quarta-feira, 21 de abril de 2010

Academia da Ribeira de Muge - "As Brincadeiras"

As Brincadeiras, foi um ritual que aconteceu em Paço dos Negros, entre os anos 20 e 70 do século XX, nos dias de Quinta e Sexta-feira Santas.

"Eira do Pombas"


A Festa e o Sagrado de Transgressão

Dependentes de uma agricultura cujos métodos de exploração eram rudimentares, a mourejar do sol-fora ao sol-posto, as pessoas na aldeia viviam muito ligadas à Natureza. Existia uma sacralidade cósmica na relação das pessoas com a Natureza.
As Brincadeiras, ajuntamento anual, desfile de cultura popular, aparentando ser um mero encontro profano, mais não é que a criação, o reconhecimento de um tempo e um espaço diferenciados. O espaço temporal em que decorrem os festejos torna-se, para o povo, um espaço inscrito no tempo, tempo que é um tempo cíclico, inviolável, que aguardam ano após ano. O espaço físico sendo um espaço secular é para estas multidões rumorosas e festivas ocupado como um espaço simbólico sagrado. Povo habituado ao sofrimento, quando não à fome, sendo dois meios-dias de jejum, que cumprem a rigor, não há lugar sequer para a comida e a bebida, muito menos os seus excessos. É assim criado um tempo e um espaço fortes em que as cantigas e os jogos campestres são claramente os elementos aglutinadores do grupo social que é a aldeia.
Ano após ano, durante a Quaresma, tempo de jejuns e interditos, toda a aldeia se mobilizava para as “Brincadeiras”. Após quarenta dias em que não era socialmente permitido o cantar profano, com o culminar da Quaresma, durante a qual, de lúdico apenas tinha havido as trocas de compadres, a Semana Santa tudo indicava que fosse um tempo ainda de maior recolhimento; não é, há como que uma antecipação da expansão final. Nestes descantes, jogos e brincadeiras em dia de Quinta-feira Santa é, contudo, notória uma inter-relação entre o lúdico, o profano e o sagrado. Há como que um ritual profano mas que se confunde com o religioso em que, o mito, para toda a população, está presente nos gestos ciclicamente repetidos.
Nestes rituais profanos, que aconteciam em dias de grande densidade religiosa, havia como que uma estruturação de um tempo primordial que era actualizado anualmente nestes folguedos. A participação no evento era de tal modo vivida que o sentimento existente era quase trans-humano. À falta de meios materiais, o excesso próprio da festa era posto no único bem de que podiam usufruir: as cantigas, os jogos e toda a alegria que era intrínseca à sua condições de almas simples
 – Na Quinta e na Sexta-feira santas, íamos do trabalho para as Brincadeiras e das Brincadeiras para o trabalho, sem comer e nem fome tínhamos, diz-nos uma informante.

Submissão e resistência – A construção da identidade de grupo
Nestas festividades a população permitia-se festejar sem o controlo directo tanto da Igreja como dos patrões, evidenciando ser este o resultado de uma inconsciente confrontação entre o sagrado de regulação e o sagrado de transgressão, e acontecendo por esta via a regeneração da ordem através de um caos dominado, o que permitia ainda conferir uma forte identidade de grupo à população da aldeia. Mais que uma religiosidade institucionalizada, parece existir uma vivência de um tempo sagrado onde as pessoas são arrancadas à sua intimidade para se entregarem a um turbilhão de actividades lúdicas nestes dias, deixando-se arrastar por um arrebatamento colectivo.
Patenteiam ainda, estes tão espontâneos e ansiados folguedos, numa época em que os direitos dos trabalhadores eram escassos, uma oportunidade rara de interromper a labuta diária, e os deveres dos trabalhadores não obedeciam a normas contratuais rigidamente escritas, mas à palavra dada, uma forma de resistência popular simbólica, a coberto do religioso, perante a dominação social a que as populações estavam submetidas, e simultaneamente a criação de alternativas, a esta submissão. Estavam criadas as condições para uma forte identidade comunitária, entre iguais, em que a integração e a pertença grupal não permitia sentir o peso e os constrangimentos sociais.

A sacralização de um espaço simbólico
Dentro do universo cultural que é a aldeia, as cantigas, as danças de roda, os jogos, e mesmo as cantigas que frequentemente adoptavam a configuração de um jogo, que, de repetitivos, ano após ano, obedeciam ao cânone reservado, quase exclusivo para estes dias. Ainda hoje, na aldeia, determinadas cantigas e jogos como a Condessa, a Biloa, os Bem-casados, a Troncha-la-moncha, o Babão e muitos outros, foram apropriados e são referenciados como cantigas e jogos das Brincadeiras.
A festa era uma dimensão social importante para o povo. Vemos na reconstituição dos ambientes festivos pelas nossas informantes, quão importante é ainda hoje para a população de Paço dos Negros, homens e mulheres que conviveram com estes ambientes rurais, a referência saudosa aos festejos e ao próprio local onde durante décadas os mesmos se desenrolaram. Valorização esta destes espaços simbólicos, que se insere dentro de um conceito onde os espaços físicos são valorizados, em que rapazes e raparigas aproveitavam estes rituais festivos, que aguardavam o ano inteiro, para brincar e para se divertirem.

As Brincadeiras como um ritual de iniciação
Neste tempo e neste espaço primaveril, em que toda a natureza se renova, as pessoas agem como que participantes de corpo inteiro de uma nova criação. Quantas vezes através da mudança de estado, passando à condição de adultas, os rapazes, mais as raparigas, entravam na roda, outras vezes mostrando-se à sociedade, a toda a aldeia, como par de namorados, aldeia que está presente nestes festejos campestres e que aguarda um ano inteiro por estes rituais.

Ainda hoje dentro da localidade existe o Arneiro do Pombas que, embora circunscrito a uma área reduzida, com os seus sobreiros, a sua grande eira ensaloada.