Paço dos Negros e Gil Vicente
Em Paço dos Negros existe a lenda do Rei Preto. Um mistério. “Escravo” negro, mítica figura, homem rebelde, refilão, que maltratava os escravos, e que reivindicava para si o título de fidalgo. Rei Preto. É assim que o enigma persiste a par com a lenda, em Paço dos Negros.
O documento, CC, 1, mac. 40, fol. 53, reza que em 1528 foram feitos pagamentos pelo almoxarifado de Santarém: « E 42$670 rs. ao almoxarife dos paços da Ribeira de Muja e escravos e filhos deles. – E 2$580 rs. mais ao dito almoxarife pera mâtimêto de hû escravo além dos outros. – E 2$00 rs. mais ao dito almoxarife pera corregimêto das ferramenta e compras doutras novas, e para canas, fio, thamiça.- e 2$580 rs. mais ao dito almoxarife para mântimêto e vestido e calçado da mulher preta, com que casou Diogo Lopes, preto».
Em correlação com este, o documento, de 1529, CC, Parte 1, maç 43, doc 110, em cuja relação, os escravos [30] da Ribeira de Muge e filhos deles, receberam de acrescentamento [acrescentamento decerto ao doc de 1528, referido], de seu conduto e calçado, 6125 réis, que foram pagos ao almoxarife Luís da Mota. Neste documento, é Fernando Frade nomeado em separado, «…entrando aqui os 642 réis que Fernando Frade o dito tempo vence…»
Um outro documento, de 1530, CC, Parte 2, maç 163, doc 23, este referencia o mesmo “Fernando Frade, homem preto, que servia na capela [de S. João Baptista], do Paço da Ribeira de Muge”: «Fernando Frade, homem preto da Ribeira de Muge, por este mandado de Pedro Matela, contador em Santarém, recebe e assina o recebimento de 5 alqueires de azeite, pêra andarem [ele e outros] na capela dos Paços da dita Ribeira».
Analisando o livro de Henrique Leonor Pina, “Os papéis de S. Roque”. Uns papéis do século XVI, escritos por Simão Vinagre Rodrigues, de Almeirim, que vivenciou muito daquilo que deixou escrito nos “Papéis”, e sobre o Paço dos Negros e seus escravos, que viram a luz do dia apenas no século passado, diz: «eram escravos guinéus, vindos do reino de Benin. Viviam em casas de pau a pique, com paredes de caniços, tapadas de barro e telhados de espadana e junco»; parece-nos estar encontrada a chave do enigma.
Dos mesmos “Papéis”, continuo descrevendo o que nos transmite Henrique Leonor Pina: «Gil Vicente muitas vezes representou em Almeirim. Entre 1525 e 1527 ali permaneceu grande parte do seu tempo devido a febres. Ao ler as suas obras reconhece Simão as relações directas com Almeirim, embora Gil Vicente as finja noutros lugares. Falava com os negros da Atela, e foi um frequentador do Paço da Ribeira de Muge, que bem conhecia, por ali se deslocar para falar com os negros, os que estavam em Almeirim já não falam bem língua de preto, dos quais retirava o falar para as suas obras.»
Sobre este Paço Manuel Leyguarda, em El Calzadilha, un extremeno en la corte portuguesa, diz: «En este lugar en donde por entonces estuvo la residencia de ocio del monarca portugués aun se vislumbran los restos de una pequeña capilla y el recinto del patio interior, lugar en donde se cuenta que se representaron algunos autos de fe de Gil Vicente.»
Teria sido, sem dúvida, no Paço da Ribeira de Muge que encontrou um preto, de nome Fernando, moço da capela, a quem pediu que lhe rezasse o Padre-nosso e a Salve Rainha, que podemos ler em «O Clérigo da Beira». Salve-rainha que é um verdadeiro hino à vida no paço da Ribeira de Muge:
– Sabe a Regina*
mathoa misericoroda
nutra dun cego sável
até que vamos a oxulo filho degoa
alto soso peamos já frentes
vinagre quele quebraram em balde
ja ergo a quarta nossa
ha ylhos tue busca cordas
oculos nosso convento
e geju com muyta fruta ventre tu
ja tremens ja pias.
Seoro Santa Maria…
*Salve Regina, mater misericodiae Vita, du cedo et spes nostra, salve! Ad te clamamus, exules filii Evae. Ad te suspiramus gementes et flentes in hac lacrymarum valle. Eia ergo, advocata nostra illos tuos misericordos óculos ad nos converte. Et Jesum, benedictum fructum ventis Tui nobis, post hoc exilium, ostende. O clemens, o pia! o Dulce virgo Maria.
Em a Nau de Amores, a tragicomédia com que, em 1527, se recebeu em Lisboa a nova rainha Dona Catarina de Áustria, o negro vai ao encontro do que diz a lenda em Paço dos Negros, bem como o que nos revela Henrique Leonor Pina: invoca ser fidalgo, por ser um dos quarenta filhos do Rei do Benim: «Se boso firalga é aqui/a mi firalgo também/fio sai de rei Beni/de quarenta que ele tem/a masa firalgo é a mi.»
Penso que, finalmente, com o cruzamento dos documentos transcritos, a opinião dos estudiosos de Gil Vicente, e pelo que nos diz Manuel Leyguarda e Henrique Leonor Pina, pela boca de Simão, «de que fazendo-se passar nas Beiras, as obras bem poderiam passar-se em Almeirim», estará assim, definitivamente esclarecido quem é a figura do lendário Rei Preto, bem como o Negro com que Gil Vicente construiu alguns dos quadros das suas obras. São pois a mesma e única pessoa, Fernando Frade, Furunando, o lendário e rebelde Rei Preto do Paço dos Negros, um dos 40 filhos do rei do Benin, como na fala das peças o próprio se identifica; o «homem preto que andava na capela da Ribeira de Muge», que ficou para sempre ligado a Paço dos Negros.
Paço dos Negros mantém há cinco séculos a memória do seu “Rei Preto”, afinal o tão reivindicado como desconhecido Furunando de Gil Vicente. Pode pois, com legitimidade, reivindicar-se como lugar para sempre ligado à obra do grande Mestre do teatro português e constituir-se como centro de estudo da sua obra.