Como sociólogo e amante do Folclore da minha terra, do qual tento ser conhecedor e respeitador, folclore entendido como toda a cultura popular genuína, desde as canções, as danças, os trajes, os contos, as lendas, as histórias, o romanceiro, os dichotes, as lengalengas, as artes manuais tradicionais, etc., é minha obrigação, não só pesquisar, recolher, mas em permanência questionar-me sobre estado da cultura popular em Paço dos Negros, terra antiga e riquíssima em algumas destas temáticas.
Algumas questões preliminares: O que deve fazer um agente da autoridade, um cidadão, se for confrontado com, por exemplo, um assalto à fazenda mesmo que alheia?
Intervir.
Intervir.
O que deve fazer um médico, um cidadão, se for confrontado com um a(in)cidente em que haja feridos?
Intervir.
Intervir.
O que deve fazer um simples cidadão responsável se assistir à delapidação de bens públicos?
Intervir.
Intervir.
O que deve fazer um estudioso da história e da cultura popular local, se detectar que a representação da cultura da sua terra não é representativa e respeitadora dessa mesma matriz cultural? Intervir, denunciando e propondo novas e correctas abordagens, pois o melhor que qualquer povo pode ter é a sua história e a sua cultura.
Realidades mais abrangentes.
Não está em questão em que cada qual se ache no direito de representar as peças que, e como bem entender. A questão está em omitir a verdade, não dizendo a origem dessas mesmas peças, fazendo-as passar por representativas da cultura de um determinado povo. Com todo o prejuízo para a cultura do povo, porque deformadora da realidade cultural desse mesmo povo e, é sabido que motivos vários podem impedir que esse mesmo povo, incluindo os mais novos, que evidentemente nasceram fora do contexto cultural que se quer representar, tenham acesso à verdade histórico-cultural da sua terra.
Tratemos hoje o caso das modas que o Rancho “Folclórico” DESTA MINHA TERRA, Paço dos Negros, interpreta.
Num brevíssima análise de conteúdo, e semântica, das 28 modas que o mesmo me disponibilizou, sendo eu primeiro secretário, 23 são cantadas. Destas 23, 13 têm características de desafio entre homem e mulher. Um manifesto exagero. Não aparece uma única CANÇÃO, que tenha na matriz a beleza poética, a riqueza da metáfora, a simplicidade rude, das quais o Folclore da terra é tão rico.
Um exemplo desta riqueza metafórica no “Vira da Tira” (das minhas pesquisas):
Ó roseira tu tens bicos
Talvez me queiras picar
Não te lembras ó roseira
Quando eu te ia regar…
Nestes 23 temas, vemos que aparecem frequentemente termos como “colega” e “amigo”. Não aparece uma vez o termo “camarada”, que era o termo usado entre os trabalhadores do campo de antanho, bem como ainda hoje. Alguns exemplos:
…Gosto de cantar a teu lado
Como colega e amigo
Fadinho do Ti Josué
…Olha de frente pra mim
Não te estejas a zangar
Colegas e bons amigos
Sempre prontos pra cantar
Vira da desgarrada
…Quando olhei para ti
Com estes meus olhos
Pois eu não sou cega (bis)
Eu gosto muito de ti
Eu olho e sorri [o]
Mas é só de colega (bis)
Vira do Alto choupo
…Podes crer que eu sou sincero
Aquilo que eu quero
Em sonhos te digo (bis)
Eu aproveito o ensejo
Pois o que eu desejo
É ser teu amigo (bis)
Vira dos sonhos
…E com esta me despeço
Estamos só a brincar
Ficamos ambos amigos
Terminamos a cantar (bis)
Fadinho rodado
Erros históricos grosseiros:
… Meu concelho é mesmo assim, por ele sinto alegria
As Fazendas de Almeirim é a minha freguesia (bis)
Bailarico do Jardim
Erro histórico e geográfico-administrativo, pois faz-se passar nas décadas anteriores a 1957, ano da criação da freguesia de Fazendas, quando a freguesia era ainda Raposa.
Minha terra antigamente
Quem admirado não fica
Hoje chama-se Paços Negros
Dantes era Paços de Manique
Dança do Conde de Manique…
Erro histórico, pois a verdade histórica da terra o desmente.
Quadras de pé coxinho
Eu gosto de ti menina
Eu te faço a confissão
Se não te importasses muito
Davas-me o teu coração
Meu coração não te o dou
Não o quero comprometido
Porque eu não gosto de ti
Para seres o meu marido
Não me dês esse desgosto
Que eu morro de amor por ti
Tu és a cara mais linda
Que eu no mundo já vi
Vou-te dizer uma coisa
Eu te explico a cantar
Vamos entrar em acordo
Iremos os dois casar
Vira dos namorados
…Como nós não há igual
Por todo lado a invejo
Esta moda é dançada
Na zona do Ribatejo (bis)
Passo largo
…Ó menina tu também sabes
Pois eu quero ouvi-la cantar
Pois eu vou te dar um aviso
Que com esta vais-te calar
Fadinho do Ti Josué
Quando te encontrei na rua
Reparei e vi
Deste um jeitinho nos olhos
Apaixonei-me por ti
Quando te encontrei na rua
Eu vi que tinhas conversa
Mas eu quero-te dizer
Que de ti nada me interessa
Refrão - Ele vestido de preto
Ela vestida de branco
Ó que cara tão bonita
Na mulher do meu encanto
Vou-te levar à igreja
Bem juntinho ao altar
És a mulher dos meus sonhos
Com quem eu hei-de casar
Pois não sejas tão teimoso
Não estejas a ateimar
Assoa-te ó meu ranhoso
Toma o lenço de assoar
Ele vestido de preto…
Pois ó minha lambisgóia
Não me estejas a ralhar
Eu tenho ouvido dizer
Quem desdenha quer comprar
Ouça bem ó meu menino
Veja lá como é que fala
Se lhe dói muito a barriga
Não coma erva na vala
E com esta me despeço
Estamos só a brincar
Ficamos ambos amigos
Terminamos a cantar (bis)
Fadinho rodado
Inverosímil, pela época histórica local que pretende retratar (ela vestida de branco), pela contradição refrão/quadras, pela harmoniosa coreografia…
Esta moda é dançada
Para trás e para a frente
É batida para fora
E batida para dentro
Esta moda é dançada
Dançada assim, assim
Meia volta meu amor
Vira a cara para mim
Esta moda é dançada
Dançada ao bater das palmas
Faz virar meu coração
Muito amor nas nossas almas
Dança ao bater das palmas
Gosto de ti com paixão
Eu te digo a verdade
Vou te dar o meu coração
Como prova de amizade
Amor se gostas de mim
Não fazes nada de mais
Porque eu gosto mais de ti
Do que gosto dos teus pais
Ai que riso que graça me dá
Confirma-se assim a origem da letras não ser de base popular ancestral e desconhecida, não passaram as letras pela patine do tempo e da sabedoria popular, mas são da autoria de Jesuína Oliveira Mendes, sobre músicas populares, tal como a própria nunca negou e sempre afirmou.
Pela amostra, não discuto aqui o mérito ou o desmérito da autora, que algum teve, localmente, à época, 1984, embora serôdia. Com a devida vénia, veja-se o que já estava acontecendo no país: «Também Sebastião Arenque, depois de aceitar o convite para dirigente folclórico do Rancho “Ceifeiras e Campinos”, de Azambuja, em 1967, teve de fazer-lhe algumas transformações, retirando-lhe “todo o repertório, dado tratar-se de músicas compostas, poemas feitos e coreografias encenadas ou imaginadas, sem nada em comum com as usanças antigas das gentes da Azambuja” http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR462df847445fb_1.PDF).»
Quero declarar que, guardião de um vasto espólio, neste caso em apreço, letras, músicas e danças, que através das minhas pesquisas ao longo de mais de 10 anos o povo da região me confiou, estou disponível para ajudar o Rancho “Folclórico” de Paço dos Negros, a tornar-se um digno representante da cultura desta nossa terra. Fica a oferta.