Decorria o ano de 1962. O dia 19 do mês de Julho. Um dia quente de Verão. O sol, abrasador, tremeluzia a incendiar a própria sombra das altivas figueiras que rareavam nos arneiros em volta da casa. Naquela calmaria, parece que algo se pressentia…
O pai, doente, aborrecia de ir a mais uma consulta. Por volta da hora do almoço, disse à mãe:
– Prepara o Manel que ele hoje vai comigo!
Nos seus dez anos, Manuel ficou feliz, pois era a primeira vez que iria a Lisboa. Breve, saberia dos abrolhos que a vida tem.
Completara há poucos dias a Quarta Classe e, em domingo de feira, o pai levara-o até a Santarém à casa de D.ª Branca, uma casa que albergava estudantes das aldeias. O entusiasmo durara um mês. Nos dois últimos anos a professora Maria de Lourdes havia-lhe confiado a chave da Escola. Uma vez ouvira-a dizer ao pai: – “Senhor João ponha-o a fazer a Admissão em Santarém…”
Foram vinte quilómetros de novidade a velha camioneta até Santarém. Na estação, com a imaginação à solta, fervilhava o seu universo de linhas-férreas, enquanto o pai indicava: – Nós vamos por aquela linha...; esta aqui vai para o Porto... – e apontava para a curva onde as linhas se perdem de vista, escondidas já por entre as canas que as ladeavam.
Apanharam um comboio, ainda se recorda, com bancos amarelos de verniz e madeira. Parava em todas as estações. Pelo caminho, agarrado à janela, Manuel prendia-se aos nomes das estações: Vale de Santarém, Santana-Cartaxo, Azambuja, Vila Nova da Rainha, Vila Franca de Xira... Nomes que ainda não relacionava com as "Viagens" de Garrett, um Redol; … Carregado, Póvoa, Sacavém, Olivais, cuja Marquesa de Rio Maior e suas tribulações de cronista crítica da viagem inaugural do Caminho-de-ferro, no longínquo 1856, não faziam parte do seu imaginário. Mas já conhecia todas as linhas e ramais. Orgulhava-se disso. Afinal, na escola, andara no último ano a decorar, para ter na ponta da língua, aquele ror de linhas-férreas.
Viu fábricas. E uma ponte com arcos? E o rio Tejo tão grande...
Em Lisboa, viu barcos. Enormes! Pareciam prédios. Tal como Garrett, viu o rio Tejo por uma nesga. Só que um século mais tarde. Mas eram ainda os mesmos velhos armazéns e montes de sucata que tapavam a vista do rio.
Andou de autocarro, de “Metro”… Como era importante viajar num comboio debaixo do chão! À tardinha foi ainda ao aeroporto espreitar os aviões, e ver o pôr-do-sol. À noite viu televisão, um bem ainda raro. Na aldeia onde morava não havia electricidade e só havia uma proibitiva televisão, na “Sociedade”.
Dormiu numa costumada casa particular que a doença do pai obrigou a conhecer.
De manhã esteve à porta do Jardim Zoológico. Não entrou. Era preciso ir à consulta ao Hospital de Palhavã, como se dizia na altura.
Um mês depois, morria o pai nessa distante Lisboa. E lá repousa…
O sonho de estudante desvanece-se. Fora apenas uma miragem. Afinal vivia numa aldeia pobre, sem comunicações, por detrás da serra, onde a agricultura era de subsistência e as mentalidades subsistiam.
A vida continua mas, para Manuel, a realidade da vida anuncia-se cedo e dura.
No dia 7 de Outubro desse ano, dia de aulas, Manuel dá já o corpo ao manifesto. Vê passar os meninos que vão para a escola e chora. Chora e esconde-se dos olhares em cima da cabula da palha de arroz que, de forquilha na mão, ergue com a irmã. Já sentira o luto carregado de sua mãe e irmãs mais velhas, as vantagens e desvantagens de viver uma sociedade comunitária: os pêsames, os constrangimentos, o controlo social, mas também a solidariedade e a amizade dos vizinhos, amigos e conhecidos, enquanto ajudavam na faina da vindima.
O menino cresceu. Foi cavador, ceifeiro, na caserna das obras sentiu no corpo os percevejos, comeu o pão que o diabo amassou. Tornou-se homem, viajou, lutou, estudou. Hoje compreende a dureza da vida, como só o podem fazer os que não tiveram tempo nem oportunidade para crescer, brincar e estudar.
Mais de quarenta anos volvidos, três décadas de vida ferroviária a percorrer o país de lés-a-lés, Manuel conhece as cidades, as paisagens, as estações e as linhas, as distâncias e os tempos para as percorrer.
Manuel perdeu muitas ilusões: Já não há tempo, nem magia, para se ir de comboio, de véspera, sob um sol tórrido, ver o pôr-do-sol em Lisboa; na estação de Santarém já as mulheres não apregoam as bilhas de água; as “Pombinhas de Santarém” deixaram de voar nas suas vozes; mas, quando, diariamente, na velhinha e linda estação de Santarém olha para a mesma curva da Linha do Norte, revive uma excitante tarde do Verão da sua infância, e ainda acredita: “O Porto dos meus sonhos avista-se da estação de Santarém”.