sábado, 25 de agosto de 2012

Paço dos Negros, Gil Vicente e o Rei Preto

Um excerto do livro Paço dos Negros da Ribeira de Muge-A Tacubis Romana.

62 – O Negro Furunando em Gil Vicente

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Como atrás foi dito, Henrique Leonor Pina, em Os Papéis de S. Roque”, citando uns escritos do século XVI, escritos por Simão Vinagre Rodrigues, de Almeirim, que de moço de estrebaria, excepcionalmente admitido na escola do Paço de Almeirim, em criança, a pedido de seu avô, estudou em Évora, chegou a bacharel, e que reconhecera nas peças de Mestre Gil as pessoas e as paisagens de Almeirim, referindo-se ao negros que habitavam o Paço da Ribeira de Muge, diz: «eram escravos guinéus, vindos do reino de Benim. Viviam em casa de pau a pique, com paredes de caniços, tapadas de barro, e telhados de espadana e junco.»

Nos mesmos “Papéis”, diz Henrique Leonor Pina: Gil Vicente muitas vezes representou em Almeirim. Entre 1525 e 1527 foi muito fecunda a sua obra, um período em que permaneceu grande parte do seu tempo nesta vila real, devido a febres. Foi nestes anos que escreveu as três peças em que põe o negro Furunando a falar. Ao ler as suas obras [de Gil Vicente] reconhece Simão relações directas com Almeirim, embora Gil Vicente as finja noutros lugares. Almeirim reconhecia-se nas personagens e conhecia bem as paisagens criadas por Mestre Gil. Falava com os negros da Atela, e foi um frequentador do Paço da Ribeira de Muge, que bem conhecia, por ali se deslocar para falar com os negros, os que estavam em Almeirim já não falam bem língua de preto, dos quais retirava o falar para as suas obras.

Foram estes os anos de ouro dos negros no Paço da Ribeira. Teria sido na capela do Paço da Ribeira de Muge que encontrou um preto, um tal Furunando, o documentado Fernando Frade, o lendário negro  que invoca Jesus Cristo, refilão,e que invoca ser fidalgo, mais qualquer outro, por ser um dos quarenta filhos do rei do Benim.

Teria sido pois, ao serviço do rei, na capela do Paço da Ribeira de Muge, que Gil Vicente encontrou um preto, de nome Fernando, figura de tal forma marcante que se tornou o seu Furunando; negro de certo modo revoltado, a quem pediu que lhe rezasse o Padre-nosso e a Salve Rainha*. Quem melhor poderia encontrar Mestre Gil, para lhe rezar o seu latim, que um negro refilão, com alguma preparação para tal, quiçá presunção, que andava na capela?

Como nos confirma Henrique Leonor Pina: Pediu-lhe então Mestre Gil que rezasse o Padre-nosso e a Salve Rainha; encontramos em o Clérigo da Beira linguagem e orações, cujas reminiscências ainda encontramos nas memórias das mulheres locais, como por exemplo na “lenda dos gatos endemoninhados”, “Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo”, que uma nossa informante, Manuela dos Gagos, nos revelara, em 2003, que diz ter ouvido da boca de Guilhermina Moreira [1848-1944], antiga dona do Paço.

São reveladores os termos usados, no seu latim, saídos da boca de Furunando, um verdadeiro hino à vida no Paço da Ribeira de Muge: (sável, égua, vinagre, balde, quarta, cordas, convento, fruta, pias):

Sabe a Regina mathoa misericoroda/nutra dun cego sável/até que vamos a oxulo filho degoa/alto soso peamos já frentes/vinagre quele quebraram em balde/ja ergo a quarta nossa/ha ylhos tue busca cordas/oculos nosso convento/e geju com muyta fruta ventre tu/j/tremens ja pias/Seoro Santa Maria.

* - Salve Regina, mater misericodiae Vita, du cedo et spes nostra, salve! Ad te clamamus, exules filii Evae. Ad te suspiramus gementes et flentes in hac lacrymarum valle. Eia ergo, advocata nostra illos tuos misericordos óculos ad nos converte. Et Jesum, benedictum fructum ventis Tui nobis, post hoc exilium, ostende. O clemens, o pia! o Dulce virgo Maria.