sexta-feira, 28 de outubro de 2016

160 anos, a homenagem de um ferroviário.



 Do livro Histórias Ferroviárias.

O dia da Inauguração do Caminho-de-ferro


Se este livro recorre, de certo modo, a aspectos algo caricatos ocorridos com ferroviários, o certo é que faz jus ao dia da inauguração do primeiro troço de linha, entre o Cais dos Soldados e o Carregado, a 28 de Outubro de 1856 em que, apesar da solenidade do dia, logo proporcionou a primeira história grotesca para ser contada aos vindouros.
Eis o que, destoando da boa imprensa da época, “tudo correu sobre rodas”, encontramos nas “Memórias da Marquesa de Rio Maior”, sobre o acontecimento histórico:
"Vou narrar o que me lembra do solene dia da inauguração que, enfim, chegou…
Como estávamos de luto pelo falecimento de minha querida Avó, minha Mãe não quis ir ao banquete do Carregado. Mas foi comigo para um cerro fronteiro à estação de Alhandra ver a passagem do comboio em que meu Pai devia tomar lugar…
Murmurava-se insistentemente que a ponte de Sacavém não poderia resistir ao peso… Esse terror, conjugado com o atraso enorme, punha os nossos corações em sobressalto, no pavor de que se tivesse dado uma catástrofe.
Finalmente, avistámos ao longe um fumozito branco, na frente de uma fita escura que lembrava uma serpente a avançar devagarinho. Era o comboio!
Quando se aproximou, vimos que trazia menos carruagens do que supúnhamos. Vinha festivamente embandeirado o vagão em que viajava El-Rei D. Pedro V.
O comboio parou um momento na estação, de onde se ergueram girândolas estrondosas de foguetes; vimos El-Rei debruçar-se um instante e fazer-nos uma cortesia; meu Pai, alegremente, acenou-nos um adeus rápido. Tudo passou como uma visão (...). Só no dia seguinte ouvimos meu Pai contar, com aquela "verve", que lhe era peculiar em certas ocasiões, as várias peripécias dessa jornada de inauguração.
A máquina, escusado será dizer, das mais primitivas (parecia um enorme garrafão), não tinha força para puxar todas as carruagens que lhe atrelaram; e fora-as largando pelo caminho. Algumas, de convidados, nos Olivais. O vagão do Cardeal-Patriarca e do Cabido ficou em Sacavém; mais um, recheado de dignitários, ficou ao desamparo na Póvoa. – Creio que se o Carregado fosse mais longe, e a manter-se uma tal proporção, chegava lá a máquina sozinha, ou parte dela.
Foi pelas alturas da Póvoa que meu Pai passou para a carruagem real na qual chegou ao Carregado, onde assistiu aos festejos, e onde pôde comer lautamente, porque o banquete era farto e também porque…passaram muita fome os que ficaram pelo caminho. Esses desprotegidos da sorte, semeados pela linha ao acaso das debilidades da tracção acelerada, só chegaram alta noite a Lisboa, depois de ousadíssimas aventuras, que encheram durante meses os soalheiros oficiais. Até andou gente com archotes, pela linha, em procura dos náufragos do Progresso.







Como o povo cantou a morte de D. Pedro V


Foi D. Pedro V o monarca que inaugurou a era dos caminhos-de-ferro em Portugal. Jovem rei, muito querido dos portugueses, junto de engenheiros e operários percorrendo a linha, visionando os trabalhos, afincadamente tinha concorrido para esta inauguração. Morreu jovem, aos 24 anos. O seu funeral realizado no dia 16 de Novembro de 1861, cinco dias após a sua morte, foi uma grande manifestação do amor do povo para com o seu amado rei. É da história que centenas de milhares de pessoas choravam à passagem do cortejo fúnebre. É das crónicas que ilustres positivistas, como Herculano, o choraram.
Através de uma canção, perdida entre o povo simples de uma remota aldeia do concelho de Almeirim, Paço dos Negros, canção que tive se não o privilégio de a resgatar da morte, ao menos o prazer de a gravar e de a dar a conhecer neste livro, vislumbra-se o mesmo povo que, tão intensamente sentiu esta perda, vibrou com o moderno meio de transporte, de tal modo associou o rei aos tempos de progresso futuros que adivinhava que, mesmo na morte, quis cantar D. Pedro V perenemente associado ao comboio.
Remontará esta canção ao ano de 1861, ano da morte do fundador dos caminhos-de-ferro em Portugal:
Quando o comboio bateu
Três pancadas na estação
Já morreu D. Pedro V
Neto do rei João

Neto do rei João
Filho do imperador
Já morreu D. Pedro V
Já vai chegando o vapor

Já vai chegando o vapor
Com as bandeiras arvoradas
Com as bandeiras de luto
Só lhe falta as encarnadas

Só lhe falta as encarnadas
Para dar vivas ao povo
Já morreu D. Pedro V
Já lá vem o comboio novo

Já lá vem o comboio novo
Já lá vem ele a apitar
Já morreu D. Pedro V
Vem a mortalha a chegar

Vem a mortalha a chegar
Aceita-a devagarinho
Já morreu D. Pedro V
Vem o caixão no caminho.

Nota: É cantada.

PS. Quando o comboio bateu/Três pancadas na estação, tratar-se-à, de uma metáfora, à laia das pancadas de Molière, para dizer da importância do D. Pedro V na ferrovia e da sua prematura morte logo ao "bater das pancadas", pois o funeral deu-se em Lisboa e ainda não havia na cidade outras linhas.