Com a devida vénia ao blog "Em busca do património", de Samuel Tomé.
É talvez a mais emblemática figura de Paço dos Negros, na qual se
pode alicerçar a identidade desta comunidade. É a matriz comum
às pessoas que aqui vivem, e que são descendentes dos escravos
que para aqui vieram morar, miscigenados com os brancos. Foi já
esta figura alvo de uma homenagem por Evangelista (2013), onde
reúne em livro os factos históricos, as memórias orais e uma
crítica social. Entrando no domínio da lenda e da cultura popular,
há duas versões distintas da história do Rei Preto.
A primeira chega-nos pelo Conde da Atalaia, quando no final do séc. XIX
dizia ao seu caseiro do paço que “este lugar não tem história daqui para
trás, só daqui para a frente. Porque foi feito para abafar um escândalo
muito grande”. Este escândalo estava ligado a um neto bastardo
do rei, que seria filho de uma princesa sua filha e de um escravo
negro que a houvera engravidado. Assim, o monarca mandou construir
este paço, isolado no meio da charneca entre Almeirim e Coruche,
para aqui ficar degradado o seu neto preto e o seu pai, porque
se tinha de abafar o escândalo.
O Rei Preto nas comemorações dos 500 anos do Paço Real da Ribeira de Muge (2011)
Uma outra versão diz-nos que nos escravos que para aqui vieram,
veio um que era muito mau e muito ladino. Era filho do rei lá na sua
terra, em África, e aqui tinha regalias especiais, devido a essa mesma
filiação. Ficou de tal forma esta figura incrementada nas memórias
populares, que é recorrente ser apelidado qualquer rapaz mais travesso
e moreno como “rei preto”.
Tendo a lenda presente, e indo de encontro aos factos, não menciona
a documentação da época nenhuma alusão a um neto bastardo do rei
preto, nem tão pouco a um escravo que era filho de um rei em África.
Contudo, encontramos várias alusões a negro que são tratados de
forma preferencial em relação aos demais, e que muitas vezes
nem têm o estatuto de escravos.
Num documento de 1528, citado e analisado por Vasconcellos (1926)
e Evangelista (2011), é mencionado um escravo para além dos outros,
que receberia à parte 2$580 (enquanto os demais tinham 42$650
para cerca de 30 almas). Segundo Evangelista (2011), é possível
que este outro fosse Fernão Frade, que mencionamos aqui. Ainda
este mesmo documento alude a uma outra distinção: atribuiu ao
almoxarife 2$580 para mantimento, vestir e calçar uma preta, com a
qual casou o preto Diogo Lopes.
Seria algum destes três (Fernão Frade, Diogo Lopes ou a sua mulher),
o famoso Rei Preto? Não o poderemos afirmar, contudo, é bem de
salientar o seu tratamento preferencial, em relação aos demais.
Por fim, convém salientar que Fernão Frade, como Evangelista (2011)
menciona, é o preto responsável pela capela do Paço Real da
Ribeira de Muge.
Bibliografia e fontes:
EVANGELISTA, Manuel (2004). Lendas da Ribeira de Muge. S/l: Edição
Junta de Freguesia de Fazendas de Almeirim e Junta de Freguesia da Raposa.
EVANGELISTA, Manuel (2011). Paço dos Negros da Ribeira de Muge:
A Tacubis Romana. S/l: Edição do autor.
EVANGELISTA, Manuel (2013). Contos do Rei Preto. S/l: Edição do autor.