quarta-feira, 2 de julho de 2014

D. Sebastião, o Rei Preto e o Paço dos Negros

Como descendente, estudioso e herdeiro do nosso grande Rei Preto do Paço da Ribeira de Muge, e da sua tradição, do livro Contos do Rei Preto, ofereço aos que tiverem a paciência de ler, um pouco do que ficou escrito em documentos, e inscrito na memória do povo, dos tempos em que D. Sebastião frequentava este Paço, e estas charnecas, nas suas caçadas e fugas de si próprio. Daí à perda da independência foi um pequeno passo:

O Rei Preto, o Real Bando e Alcácer-Quibir


"Banco do rei Preto"

É da história que o rei D. Sebastião, estando em Almeirim, quando lhe acudiam uns ataques de merencoria, fugia à rainha D. Catarina, sua avó, e refugiava-se no Paço da Ribeira. Só ali, ou no Convento da Serra, julgava mitigar os seus tormentos.
Cultivando a destreza e valentia, o reizinho Desejado passava os dias em caçadas e montarias, sempre com o desígnio da peleja que idealizava travar com os infiéis.
Desde que aos doze anos, não completos, nas matas da Ribeira de Muge matara o seu primeiro javali, salvando de uma morte certa o seu aio D. Aleixo de Meneses, e cada vez mais bajulado o reizinho, por uma corte ociosa, servil e aduladora, julgava-se um predestinado; não escutando ninguém, escolhia passar os dias em caçadas e montarias nas charnecas dos Paços da Serra.
Quebrantado, os físicos não atalhavam as suas maleitas, os achaques febris eram constantes, lazerando enfermo recusava-se a comer; os cozinheiros porfiavam que comesse, mas o rei no seu ascetismo ia refugiar-se na capela de Santa Maria de Almeirim, na Real Capela de Nossa Senhora da Graça do Paço dos Negros, ou ia esconder-se do mundo, que jurava salvar, jejuando, junto dos frades do convento da Serra.
Era grande o sofrimento de alma do reizinho; não lhe bondavam as moléstias do corpo, sofria de um vergonhoso e secreto corrimento no órgão varonil, que, dizia-se à boca pequena, ter sido contraído ali junto dos negros, causado por uma insidiosa rameira, em noite de descomedida festança; mas sempre sonhando e cultivando o exercício físico, na teimosia de levar a gloriosa expedição às praças de Marrocos.
O Rei Preto sonhava voltar a África, mas não para fazer uma guerra que, à excepção do Real Bando de aduladores ninguém queria, pois era ver perecer o “Espírito de Almeirim”, e que anunciava mergulhar o país numa tragédia.
O Rei Preto não suportava estes bandos de louvaminheiros que enxameavam o Paço da Ribeira e o desrespeitavam; tratava-os de os beijaculos: Alteza sá mi, fio de reio, sá camarilha de beijaculo que só acá vem poro enchê pança. Um dia o seu aio, já velho de muitas cãs, doente, não pôde acompanhar o rei a fazer montaria. Quando o alienado reizinho, muito entusiasmado, corria atrás de um javardo, todos o deixaram, sozinho, a perseguir o animal por entre montes e vales. Quando o insensato Bastião desistiu da presa, sentiu a antecipação do seu Alcácer-Quibir: estava só, abandonado e perdido no meio de um matagal. Todo o seu Real Bando, que o que queria era encher a pança, nada fizera para encontrá-lo, apenas o Rei Preto, que não pertencia ao Bando Real, ficou para o apoiar. Eis o que desta caçada ficou registado pelo Padre Amador Rebelo:

«…Não tomando o caminho, ele e um fidalgo que com ele estava, subiram a um monte, e avistando um pastor com suas cabeças de gado, este lhes indicou o caminho para Almeirim, longe que estavam. Como apertava a fome com el-rei, era tarde e não tinham jantado (almoçado), disse para o pastor, tendes aí um pedaço de pão que me deis? O pastor respondeu que só um muito duro e preto, que não é para vossa mercê, que não conhecia el-rei. O rei pediu que o partisse com ele, e o comeu com tanto gosto, que disse depois que nunca em toda a sua vida comera coisa que melhor lhe soubesse.»

Sabendo-se que Alcácer-Quibir foi a morte do “Espírito de Almeirim”, ficou assim provado que os aduladores de todos os tempos são causa de morte dos que pretendem glorificar e, com eles, do próprio povo. Para o povo, mais realista e menos idealista, e que come o pão que o diabo amassou, foi apenas tirada a prova real dos aforismos populares: "Viva a fartura que a fome ninguém a atura", ou estoutro: "Não há nada como a fome para dar sabor ao pão às secas".


Nota: Não será verosímil a afirmação do Padre Amador Rebelo de que “este lhes indicou o caminho para Almeirim, longe que estavam” pois, geograficamente, estando na vertente da serra voltada ao Tejo, Almeirim (mais a fronteira Santarém), são próximas e visíveis em toda a extensão da cordilheira; estando em local ermo no interior da ribeira de Muge, ou dos Grous, ou outro, o local mais próximo onde poderiam encontrar apoio seria o seu Paço da Ribeira de Muge.