Para quem não pode ler n"O Almeirinense".
O Rei Preto e o Moinho dos Frades
bronzes do Benim
Em meados do século XVI, os frades de Nª Sª da Serra de Almeirim vinham à Capela do Paço da ribeira de Muge rezar missa. Pelo seu zelo em cuidar das almas, o rei veio a dar-lhes em esmola o assento de uns moinhos na Ribeira de Muge.
O Rei Preto, homem preto da capela, já entradote nos anos, mas que mestre era em artes várias, logo que soube da real mercê aos frades, ofereceu-se para os ensinar na arte da moagem. Em troca, os frades prometeram levá-lo ao convento e o ensinariam a bem rezar o latim.
Os frades eram gulosos e, de moinhos, o que mais queriam era a farinha feita em doces bolos.
O Rei Preto, nos seus preparos da capela, passava agora os dias a rezar no seu latim, Jeju! Crasalam! Pato Nosso!:
Jeju! Crasalam! Pato Nosso! - Pater noster, qui es in caelis,
Santo paceto ranho tu - Sanctificetur nomen tuum,
E siguo valente tu - Flat voluntas tua
E sinco sego salva tera. - sicut in coelo et in terra.
Pão nosso quanto dão - Panen nostrum quotidianum
Da noves caro he - da nobis hodie
debrite nose de brita noses - et dimite nobis debita nostra
Ja libro nosso gallo. - sed libera nos a malo.
Ámen, Jeju, Jeju, Jeju.
Entretanto os freires quando pensaram que já eram mestres esqueceram-se do Rei Preto. No moinho nem vê-lo queriam agora. Que era malcriado, preto velho não aprende línguas, que se ocupasse da capela. Tinha até a única virtude de lhes estragar as meditações, diziam.
Os frades revezavam-se na tarefa de moer o pão. Era uma oportunidade de passarem a noite em meditação, a ver escorrer a alva farinha. Todos os dias, ao nascer do sol, aparecia no moinho um irmão para substituir o que lá ficara de noite.
Os monges, românticos e sonhadores, embasbacados que estavam com a beleza e a alvura da branca farinha, era tal qual como liam nos livros, nem viam o pó doentio que aquela arte acarretava; ficavam horas em meditação, a respirar o pó da farinha, e a dar graças ao Criador.
Os fregueses esses esperavam, esperavam, até que resolviam ir pela farinha a outro moinho. Breve não tiveram os frades outra solução, senão arrendar os assentos de moinho.
Sobre a regulação da água, pouco os interessou aprender do que o Rei Preto lhes ensinou. Conseguiram captar apenas, comparando com a farinha nos gulosos bolos, que a água nos rodízios sa arte de muto cência, sa de passá no quelha com conta, peso e medida.
Ora, o Rei Preto, rebelde, revoltado que era, ao sentir-se desconsiderado pensou logo em vingar-se, de modo a que os frades viessem a reconhecer a sua real autoridade na arte de moer o pão.
Então, uma fria noite de inverno foi à represa e deitou fora a adufa de madeira que regulava a água.
Sem controlo na água, o rodízio deu em rodopiar com uma velocidade tal que estragava a farinha e as mós já faiscavam lume.
O frade ao acordar da sua contemplação, atrapalhado, vai a correr à represa e, recordando-se de que a água devia passar na calha com conta, peso e medida, corre a buscar um alqueire e sentou-se dentro da levada. Quando o frade substituto chegou, estava ele em meditação, enregelado, a medir a água com o alqueire da farinha.
Nota: Conto recolhido da tradição em Paço dos Negros; foi usada linguagem de Gil Vicente, em “O Clérigo da Beira”, por sua vez recolhida junto de Fernando Frade, homem preto da capela de S. João Baptista de Paço dos Negros.